André BarcellosTecnologia

Pesquisa Espacial: Ecografias e Raios-X

É muito importante investir em pesquisa espacial. O desenvolvimento de pesquisas espaciais pode gerar tecnologias usuais para o grande público. O que, obviamente, traz lucros enormes para os detentores das patentes. Este texto inaugura uma série que evidencia e explica o funcionamento de diversas tecnologias advindas do desenvolvimento espacial. São conhecidas como spinoffs. Tenho o objetivo de evidenciar a importância estratégica da pesquisa espacial em um país como o Brasil, que tem tudo para ser uma potência espacial!

Hoje, o tema é saúde. Mais especificamente como a pesquisa espacial nos forneceu um dos aparelhos médicos mais amplamente utilizados na medicina moderna: o ultrassom.

Um pouco de contexto…

Até a década de 70, a única forma de realizar exames de imageamento de órgãos em humanos vivos era pela exposição à radiação, especificamente os raios-X. Assim como a luz visível, os raios-X são ondas eletromagnéticas. Se diferindo apenas por seu comprimento de onda muito menor, consequentemente mais energética1. Dessa forma, a radiação de 0,01 a 10 nanômetros (comprimento de onda, aproximado, da radiação X) tem um grande poder de penetrabilidade. Isto significa dizer, que, para ela, muito mais coisas são transparentes ou translúcidas, vide Figura 1.

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Figura 1: À esquerda se vê uma mão humana exposta à radiação X e a direita uma exposta à luz visível. Percebe-se que os músculos, pele e sangue são translúcidos ou transparentes (ou seja, a radiação passa por esses meios total ou parcialmente) para os raios-X enquanto que os mesmos são opacos para a luz visível.
Como são gerados os raios-X?

Esse tipo de radiação é produzida, em geral, pela repentina desaceleração de partículas carregadas, como os elétrons. Essa abrupta mudança de velocidade de uma partícula carregada produz radiação eletromagnética. Apesar das limitações da metáfora, esse processo é algo comparável a um carro freando bruscamente. Nesta situação, o som que se escuta é uma onda cuja energia depende do quão abrupta foi a desaceleração. No caso da emissão de raios-X, idem.

Outro fenômeno que acontece na geração de raios-X por esse método, e também na frenagem de um carro, é o aquecimento ocasionado pela forte desaceleração. Você sabia que o disco de freio de um carro pode chegar a mais de 1000 ºC em uma frenagem não muito brusca? Agora imagine o calor gerado por um elétron que pode chegar a uma velocidade de 200.000 Km/s? Neste caso, algo próximo de 99% da energia cinética (energia associada ao movimento) do elétron é convertida em calor! É por esse motivo, que um aparelho que gera raios-X precisa ser muito bem refrigerado. Isso também explica, em parte, o alto consumo energético para produzir esse tipo de radiação.

A geração de ondas com diferentes comprimentos de onda depende da energia das partículas carregadas quando freadas. Para cada banda de energia existe uma aplicação diferente, vide imagem 2.


Figura 2: Ilustração dos níveis de energia, comprimento de onda dos raios-X e algumas das principais aplicações desse tipo de radiação. Por conta da grande largura de comprimento de onda e das diversas aplicações, a radiação X é dividida em Raios-X Moles (maiores comprimentos de onda) e Raios-X Duros (menores comprimentos de onda).
A missão lunar e os raios-X

Quando a NASA planejava enviar missões tripuladas à lua, na década de 60, um dos interesses era entender os efeitos fisiológicos da exposição prolongada a ambientes de “gravidade zero”. Por isso, era necessário equipar os veículos espaciais com equipamentos médicos de monitoramento. Uma das necessidades primárias era registrar imagens de órgãos internos para, além de monitorar a saúde dos astronautas, entender como eles se comportam em ambientes espaciais. A escolha intuitiva era a de equipar os transportes espaciais com aparelhos de raios-X. Como aqueles que já eram utilizados em hospitais. Entretanto, o risco de utilizá-los no espaço era muito alto! Para começar, o aquecimento produzido pela desaceleração das partículas carregadas (que atingem milhares de graus celsius localmente!). Em um ambiente altamente oxigenado, este aquecimento poderia produzir explosões. Além disso, o alto custo energético e a exposição dos astronautas a mais radiação, não apeteciam os cientistas responsáveis por essa missão.

Frente a esse problema, eles escolheram, em vez de usar radiação eletromagnética, utilizar ondas de frequências bem (bem!) menores, conhecidas como ultrassom. Essas ondas já eram utilizadas em sonares submarinos, porém utilizá-las para imagear órgãos humanos nunca tinha sido viabilizado, até então. Para tanto, seria necessário miniaturizar os componentes e aumentar a sensibilidade do equipamento.

Como funciona a ultrassonografia?

Um equipamento de ultrassonografia utiliza o eco (por isso também chamado de ecografia) produzido pela reflexão das ondas emitidas por uma fonte (um equipamento chamado transdutor, vide imagem 3). Essas ondas refletidas voltam ao equipamento emissor, onde são “lidas”. Dessa forma, o transdutor
(equipamento que fica em contato com o paciente durante um exame de ecografia) funciona como emissor e receptor.

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Figura 3: Transdutor utilizado em aparelhos de ecografia.
Equipamento que fica em contato com o paciente durante um exame de ecografia.

Quando uma onda, de qualquer natureza, encontra um obstáculo 3 fenômenos fundamentalmente acontecem2:

I.Reflexão (as ondas retornam por onde vieram);
II. Refração (as onda passam por dentro do obstáculo) e
III. Absorção (as ondas “permanecem” no obstáculo).

Em geral, esses 3 fenômenos acontecem simultaneamente e a intensidade com que acontecem dependem das características desse obstáculo.

Por exemplo, um espelho reflete muito mais que refrata e absorve a luz visível. Enquanto que uma lupa refrata muito mais que reflete e absorve a mesma luz. Além disso, a velocidade de uma onda mecânica como o som (ou ultrassom, nesse caso) depende da densidade do meio em que se propaga. Dessa forma, se uma onda refletida demora para retornar ao transdutor, sabe-se que o meio por onde aquela onda se propagou é mais denso do que aquele por onde se propaga uma onda mais veloz3. Levando em conta esses fenômenos é possível imagear os diferentes órgãos internos que possuem diferentes densidades e composições.

O valor desse spinoff

A notícia do desenvolvimento dessa tecnologia spinoff consta no bienário de 1976, no qual são descritas mais uma numerosa quantidade de tecnologias advindas diretamente da pesquisa espacial desenvolvida pela NASA neste período. Consegue imaginar o quão valiosa é essa tecnologia? Para se ter uma dimensão do valor basta dizer que até o ano 2000 cerca de 5 bilhões de exame de imageamento utilizando a técnica ultrassom desenvolvida pela NASA haviam sido realizados no mundo!

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1. A bem da verdade, a energia de uma onda não depende apenas de sua frequência, mas também de sua amplitude, o que significa que é possível produzir ondas eletromagnéticas mais energéticas com maiores comprimentos de onda.

2. Em certas condições, outros fenômenos como difração, polarização, dispersão entre outros podem ocorrer.

3. Como discutido em uma publicação do Centro de Referência para o Ensino de Física (CREF), a velocidade do som depende do inverso da densidade!

REFERÊNCIAS

Ruzic NP. Spinoff 1976, A Bicentennial Report. National Space Institute. 1976.

Biasoli JR. Técnicas Radiográficas: Princípios Físicos, Anatomia Básica, Posicionamento, Radiologia Digital, Tomografia Computadorizada. Editora Rubio. 2015.

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