Alice MugliaSaúdeSociedade e Educação

Eva mitocondrial: a matriarca da humanidade

Todos queremos saber de onde viemos, conhecer nossas origens. Hoje, apresento a vocês a nossa grande matriarca, e iremos entender como a genética descobriu nossa “Eva mitocondrial”.

Para início de conversa, precisamos esclarecer um ponto: a Eva mitocondrial não tem nenhuma relação com a Eva bíblica. No trabalho original, publicado na Nature em 1987, os autores nem usam este termo – ele foi cunhado por jornalistas divulgando a notícia. Os autores preferiam o termo lucky mother (tradução livre do inglês, “mãe de sorte”), mas ele não tinha o mesmo apelo…

Independente do nome que lhe damos, é preciso entender que ela não foi a primeira mulher a habitar a Terra. Ao contrário, acredita-se que ela tenha vivido em uma pequena comunidade, junto com outros homens e mulheres, na África, há cerca de 200 mil anos. Portanto, ela é nossa ancestral comum mais recente (do inglês, most recent common ancestor, ou MRCA). A tatata- (… infinitas vezes…) -taravó de todos nós.

E o que a mitocôndria tem a ver com essa história? Tudo a ver! Mitocôndrias são as organelas celulares responsáveis geração de energia. Elas tem uma característica muito peculiar: possuem DNA próprio. Isso quer dizer que, além do DNA presente no núcleo de cada uma das nossas células (nossos 23 cromossomos herdados do pai e 23 da mãe), possuímos ainda uma outra sequência de DNA: o mitocondrial, que chamarei daqui para frente de mtDNA.

O mtDNA é uma sequência pequena e circular que contém apenas 37 genes – muito menor do que os 19.000 genes presentes no DNA nuclear. E, mais interessante, herdamos o mtDNA exclusivamente de nossas mães. Se uma mulher tem filhas, elas recebem o mtDNA da mãe e os passa aos seus descendentes. Por causa disso, conseguimos traçar toda nossa linhagem materna analisando o DNA mitocondrial. Se uma mulher não tem filhos ou tem apenas filhos homens, seu mtDNA não será passado às gerações seguintes.

Nossa Eva mitocondrial, então, é a mulher cujas filhas tiveram filhas que tiveram filhas… e hoje todos nós, humanos, que vivemos atualmente, compartilhamos de seu mtDNA. As outras mulheres que conviveram com nossa Eva em sua comunidade certamente tiveram seus filhos e filhas. Mas as descendentes dessas mulheres, em algum momento, não procriaram ou tiveram apenas filhos homens, que não passam seu mtDNA aos descendentes. Eva mitocondrial foi a única cujas filhas tiveram, pelo menos, uma filha ao longo das gerações até os nossos dias.

Linhagem materna do mtDNA.

Com o passar do tempo, o mtDNA, assim como o DNA nuclear, vai acumulando mutações. Assim, ele funciona como um “relógio molecular”, documentando o tempo pelo acúmulo de mutações. Curiosamente, a diversidade do genoma mitocondrial entre humanos é relativamente pequena (quando comparada com a diversidade em outras espécies, como entre chimpanzés, por exemplo). Isto significa que nossa espécie é nova, e ainda não teve tempo de acumular tantas alterações.

Outra descoberta do trabalho de 1987 foi quanto a origem da Eva mitocondrial. O que os autores deste trabalho fizeram foi analisar o mtDNA obtido de 147 amostras de placentas de pessoas de diferentes populações: da África, Ásia, Europa, Austrália e da Nova Guiné. Lembrem-se que este é um trabalho relativamente antigo, e era preciso muito material biológico para este tipo de análise. Por isso, os autores utilizaram placentas. Eles observaram que os resultados separavam os grupos por regiões geográficas, e que os africanos eram o grupo com maiores diferenças entre si (maior frequência de mutações), o que nos permite concluir que este é o grupo “mais antigo”.

Mapeando essas alterações através de bioinformática, os autores observaram ainda que o mtDNA de todos os seres humanos que vivem hoje se dividem em dois galhos da árvore genealógica da humanidade: um composto apenas por africanos, e outro que incluía todas as outras populações e também alguns africanos. Eva mitocondrial é o ponto que une esses dois galhos. Os autores concluíram, portanto, que a África era o local onde viveu nossa ancestral.

Este achado corrobora a teoria conhecida hoje como “Out of Africa Hypothesis”, ou Hipótese da Origem Única. Os descendentes da Eva mitocondrial teria saído da África e se dispersado pelo planeta, dominando e “substituindo” outras espécies de Homo existentes (como Homo neanderthalensis, por exemplo). Foram várias ondas de migração, de acordo com especialistas, possivelmente motivadas por necessidade de comida ou alterações climáticas extremas. Mais recentemente, evidências têm surgido sobre a interação – sexual, inclusive – e convivência de nossa espécie com outros hominídeos. Se este assunto te interessa, já falamos um pouco, aqui no Eureka, sobre como o homem surgiu e evoluiu, se espalhando pelos quatro cantos do planeta.

Apesar de ainda existirem muitas perguntas a serem respondidas pela Genética e Paleontologia, sabemos que, quando se fala na origem da vida – ou, pelo menos, na origem das mitocôndrias – estamos certos de que somos todos parentes!

 

REFERÊNCIAS

Cann RL, Stoneking M, Wilson AC. Mitochondrial DNA and human evolution. Nature, 1987

Tucci S, Akey JM. Population genetics: A map of human wanderlust. Nature, 2016

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