É possível controlar máquinas pelo “pensamento”?
Você já deve ter ouvido falar de interfaces, próteses ou dispositivos que funcionam com base no “pensamento”, isto é, com base na atividade cerebral relacionada a uma intenção voluntária. Isso para muitos pode soar como filmes de ficção científica. Mas, a realidade é que esse tipo de interface está presente em grandes centros de pesquisas e apresentou grande evolução nos últimos anos.
Interfaces Cérebro-Máquina (ICM) são conhecidas em inglês como Brain-Computer Interfaces ou Brain-Machine Interfaces. Elas consistem em um sistema de hardware e software que permitem que os indivíduos com alguma dificuldade de comunicação e locomoção consigam interagir melhor com seu ambiente cotidiano. Com elas é possível se comunicar e até mesmo se movimentar. Para isso, utiliza-se de sintetizadores de voz, cadeiras de rodas ou próteses. Geralmente, o público-alvo das pesquisas envolvidas com esse tipo de interface são aqueles com algum tipo de deficiência motora, resultante, por exemplo, de lesão medular ou esclerose lateral amiotrófica.
Um exemplo seria de um indivíduo que tem uma prótese de mão comandada por sua atividade cerebral. A prótese é controlada, portanto, pelo “desejo” do usuário de abrir e fechar a mão.
De forma resumida, sua atividade cerebral é monitorada nesse instante, o sinal é processado e tem-se uma resposta. Caso o sinal tenha características correspondentes a fechamento de mão, a prótese executa esse respectivo comando, e o mesmo ocorreria para o ato de abrir a mão.

Como as ICMs são desenvolvidas?
O desenvolvimento de tais interfaces consiste em cinco estágios sequenciais: aquisição da atividade cerebral, pré-processamento desses sinais (eliminação de ruídos), extração de características de interesse, e, finalmente, classificação do estado mental. O resultado do classificador é então enviado para uma saída, como computadores, sintetizadores de fala, cursor de um mouse, exoesqueletos e dispositivos prostéticos.
Esses estágios idealmente devem ser executados em tempo real pela máquina, em um período que não deve ser perceptível ao usuário. Assim, as pessoas têm uma sensação de naturalidade e menos fadiga ao manipular uma ICM. Estudos recentes de 2019 mostraram uma ICM capaz de operar em tempo real com taxa de transferência de dados de 1237 bits por minuto. Isso permite diferenciar 500 mil diferentes estímulos com apenas 2 segundos de dados de eletroencefalografia (EEG) e com uma acurácia de 100%.
Aquisição de sinais
O estágio de aquisição de sinais consiste no monitoramento da atividade cerebral que pode ser realizada de duas formas: eletrofisiológica e hemodinâmica.
A atividade eletrofisiológica é gerada por correntes iônicas provenientes de neurônios. As flutuações de tensão resultantes dessas correntes podem ser medidas por meio da eletroencefalografia, eletrocorticografia e magnetoencefalografia, por exemplo.
Já a atividade hemodinâmica consiste em um processo no qual neurônios ativos apresentam maior liberação de glicose do que aqueles de regiões inativas. Assim, há um excesso de oxi-hemoglobina nas áreas ativas. E essa alteração da razão entre oxi-hemoglobina e desoxi-hemoglobina são utilizados como indicador de existência/ausência de ativação de determinada região cerebral.
Exemplos de medidas hemodinâmicas são ressonância magnética funcional (MRI), do inglês Functional Magnetic Resonance Imaging e espectroscopia no infravermelho próximo (NIRS) do inglês Near-Infrared Spectroscopy.
No geral, as medidas hemodinâmicas apresentam melhor informação espacial sobre determinada atividade cortical, isto é, maior precisão de onde ocorre determinada atividade. Em contrapartida, as medidas fisiológicas apresentam melhor resolução temporal, indicando com precisão o tempo exato onde ocorreu determinada atividade.
Uso do EEG
Assim, o método de aquisição da atividade cerebral mais utilizada em ICMs é a eletroencefalografia (EEG). Ela consiste em uma técnica fisiológica, não invasiva (diferentemente da eletrocorticografia) e relativamente mais portátil em comparação a magnetoencefalografia. As técnicas invasivas, apesar de permitirem visualizar maiores espectros de frequência e com maiores amplitudes, podem levar a rejeição do tecido e infecção, não sendo recomendadas para uso contínuo. Essas técnicas invasivas são mais utilizadas para casos como de epilepsia, em situações em que já seriam indicadas procedimentos cirúrgicos. Elas permitem verificar as regiões do córtex com atividade epiléptica, sem interferir em importantes regiões sensoriais, motoras e de linguagem.
O EEG apresenta boa resolução temporal. Entende-se como resolução temporal, a menor variação do tempo que causa uma variação relevante na indicação correspondente, no caso a atividade cerebral. Com isso, por meio do EEG, é possível detectar as mudanças cerebrais em uma resolução de milissegundos, o que não ocorre com a ressonância magnética funcional, por exemplo. Os sinais de eletroencefalografia são categorizados em bandas de frequência, (delta, teta, alfa, beta e gama) que variam de 0.1Hz a pouco mais de 100Hz.

Pré-processamento
O estágio de pré-processamento consiste em verificar se os sinais registrados estão adequados para o processamento futuro. Nessa etapa, é verificado se há presença de artefatos, como movimento ocular do usuário e/ou movimento muscular.
Os sinais que não tem relação com a atividade cerebral podem levar a uma resposta errônea do sistema. Dessa forma, esses artefatos devem ser reconhecidos pelo sistema e removidos por meio de técnicas de filtragem.
Extração
A etapa de extração de características consiste em obter atributos do sinal que representam adequadamente uma atividade cerebral. Por exemplo, as ICMs desenvolvidas para indivíduos com lesão medular são projetadas para detectar a intenção de movimento e o planejamento motor, para controlar algum dispositivo externo. Dessa forma, neste estágio devem ser extraídas características de frequência e de amplitude do sinal, dentre outras, que caracterizam a intenção de movimento.
Classificação de sinais
O estágio de classificação dos sinais visa verificar, resumidamente, qual foi o “pensamento” do usuário, baseado nas informações extraídas. Isto é, a máquina verifica se os atributos extraídos do sinal indicam uma movimentação de um membro para a direita, esquerda ou repouso, por exemplo no caso de uma prótese de membro superior.
Essa identificação é realizada por meio de algoritmos que envolvem inteligência artificial e aprendizagem de máquina. Após a classificação, haverá uma “tradução” dos sinais em comandos para a interface desejada, que pode ser uma prótese, um joystick ou cadeira de rodas motorizada, por exemplo.

Desafios para translação das ICMS para a prática clínica
É possível observar que cada etapa de uma interface cérebro-máquina inclui uma dimensão de variáveis.
As ICMs têm evoluído bastante nas últimas décadas e já existem vários protótipos que apresentaram boa acurácia em indivíduos saudáveis. Entretanto ainda existem alguns desafios até que seja possível utilizar essas interfaces na prática clínica e futuramente, sejam disponibilizados comercialmente.
No processo de aquisição dos sinais, deve-se garantir que os eletrodos estejam corretamente posicionados. Além disso, é necessário o uso de um gel para melhorar a condutância entre a pele e o eletrodo. Com isso, é necessário uma equipe para verificar se houve deslocamento dos eletrodos ou aplicar o gel novamente, se necessário. Existem tecnologias de “eletrodos secos” em que não são necessários o uso do gel, mas ainda são desconfortáveis ao usuário.
A ICM ideal tem que se adaptar ao artefato de movimento, para que o indivíduo consiga desempenhar atividades cotidianas mais livremente. Outro grande desafio da etapa de pré-processamento é separar o que é de fato “ruído”, do que é a atividade cerebral sem a perda de nenhuma informação importante para decodificação da intenção motora.
Outro importante ponto está em reconhecer quais são as características mais adequadas do sinal para representar um tipo de estado mental. Isso influencia significativamente para que a máquina execute uma classificação correta e, de fato, realize a atividade que o indivíduo “pensou” inicialmente.
Um futuro promissor
Deve-se ressaltar que estão em estudo formas de aprimoramentos de hardware e de software relacionados com as ICMs. Assim, será possível que os vários processamentos e análises sejam executados em um período que não seja perceptível ao usuário. Da mesma forma, ainda são necessários mais estudos para que o equipamento seja ergonômico e confortável, para que o indivíduo consiga utilizá-lo por várias horas e que permita a sua locomoção.
Como vocês podem observar, ainda é necessário um considerável esforço científico para que essas interfaces façam parte do nosso dia a dia, permitindo melhor qualidade de vida para pessoas com deficiência. Para isso, cientistas de todas áreas como neurocientistas, engenheiros, matemáticos, especialistas em reabilitação, terapeutas dentre outros estão trabalhando em todo o mundo para que essas tecnologias sejam parte de um futuro próximo.
REFERÊNCIAS
Nagel S, Spüler M. World’s fastest brain-computer interface: Combining EEG2Code with deep learning. PLoS One. 2019
Nicolas-Alonso LF, Gomez-Gil J. Brain Computer Interfaces, a Review. Sensors. 2012.
Rupp R. Challenges in clinical applications of brain computer interfaces in individuals with spinal cord injury. Front Neuroeng. 2014.
Kubler A, Kotchoubey B, Hinterberger T, Ghanayim N, Perelmouter J, Schauer M, Fritsch C, Taub E, Birbaumer N. The thought translation device: A neurophysiological approach to communication in total motor paralysis. Exp. Brain Res. 1999.
Satheesh JK, Bhuvaneswari P. Analysis of Electroencephalography (EEG) Signals and Its Categorization – A Study. Procedia Engineering. 2012.