Ambiente e BiologiaSamuel Campos Gomides

As cobras-de-duas-cabeças estão brotando do chão

Estudos recentes têm revelado que o Brasil possui muito mais espécies de cobras-de-duas-cabeças do que o imaginado. Esses animais, que tecnicamente são conhecidos como anfisbenas, têm sido cada vez mais estudados pelos herpetológos. E as descobertas desses cientistas, que estudam os répteis e anfíbios, trazem novas informações sobre esse grupo, assim como a descoberta de novas espécies em todo o país. Ficou curioso? Continue lendo nosso texto e saiba muito mais sobre esses seres fascinantes que vivem enterrados bem debaixo dos nossos pés.

O que é uma anfisbena?

Popularmente, as anfisbenas são conhecidas como cobra-de-duas-cabeças, ou ainda, como cobras-cegas. No entanto, primeiramente é necessário explicar que esse animal não é uma cobra, não possui duas cabeças e muito menos é cego.

As anfisbenas são répteis que, juntamente com os lagartos e as serpentes, formam um grupo denominado Squamata. Apesar de compartilharem um ancestral em comum e serem parentes próximos, as anfisbenas não são cobras.

Esses animais vivem enterrados no solo e, por isso, tem os olhos bem pequenos, quase vestigiais e não enxergam muito bem. Como a cabeça é bem parecida com a ponta da cauda, muitas pessoas ficam confusas e acham que esse animal possui duas cabeças, o que não é verdade.

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Figura 1. Os olhos das anfisbenas (apontado pela seta) são recobertos por uma escama, o que os tornam mais difíceis de distingui-los em um primeiro momento.
Elas não possuem duas cabeças

As anfisbenas possuem  estruturas anatômicas extremamente adaptadas ao modo de vida subterrâneo. Por isso, são seres especializados na escavação de túneis. Não possuem membros (são ápodes – com exceção de uma espécie) e seu crânio é altamente calcificado, muito rígido. Esse crânio duro e resistente funciona como uma pá e é através de sua movimentação que a anfisbena escava o solo.

Além disso, seu tegumento também é muito característico. Ele possui escamas que formam anéis ao redor do corpo e poucas conexões com o tronco, formando um tubo. Consequentemente, o tronco pode “deslizar” por dentro do tegumento, facilitando o deslocamento para frente e para trás nos túneis em que vive.

Esse comportamento de deslizar para frente e para trás com facilidade, aliado a pouca diferença visual entre cabeça e cauda, faz as pessoas se confundirem. Isso reforça o mito de que esse animal tem duas cabeças. Inclusive vem desse hábito de locomoção o nome desses animais: “Amphisbaenia” origina-se das raízes gregas amphi = duplo, baen = caminhar.

No Brasil existem várias espécies de anfisbenas

O primeiro registro desse tipo de animal no Brasil foi somente em 1820. Até a década de 1960 o número de espécies conhecidas era muito pequeno, menos de 30. Foi a partir dessa época que começaram os estudos sobre o grupo e, desde então, vem sendo descobertas várias espécies no Brasil. Somente nos últimos 3 anos já foram descobertas 11 novas espécies de anfisbenas (ou cobra-de-duas-cabeças) em solo brasileiro. 

Duas dessas espécies são da Caatinga baiana, chamadas de Amphisbaena kiriri e Amphisbaena acangaoba, descritas por um grupo de biólogos (incluído esse que vos escreve).

As anfisbenas são encontradas em todo o país

O nome da primeira espécie foi dado em homenagem aos índios Kiriri, também conhecidos como Kariri (ou Cariri), que antigamente viviam em grandes comunidades nas Caatingas do interior do estado baiano.

A palavra “Kiriri” significa silencioso (ou taciturno) na língua Tupi original dos nativos do litoral brasileiro. Esse nome também remete aos hábitos desse animal, que além de não enxergar bem e viver escondido sob os solos, não emite nenhuma vocalização, dificultando sua observação no seu hábitat natural.

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Figura 2. A simpática Amphisbaena kiriri que foi descoberta na Caatinga brasileira cabe na palma da mão. Foto de Henrique Costa.

O nome da segunda espécie (A. acangaoba) também se refere a uma palavra de origem na língua indígena Tupi. Ele remete aos diversos adornos usados na cabeça durante o cotidiano dos indígenas brasileiros. Eles foram referência para nomear a anfisbena devido à espécie possuir um conjunto de escamas no topo da cabeça que lhe dá a aparência de usar um capacete. Por isso, os pesquisadores sugerem nomeá-la popularmente como anfisbena-de-capacete.

O uso dos nomes com origens no Tupi foi uma homenagem à numerosa população indígena brasileira. E, também, uma maneira de chamar a atenção para a situação desses povos que sofrem com a destruição dos ambientes naturais e os conflitos com invasores nas reservas em que habitam.

Não há o que temer

As cobras-de-duas-cabeças não são peçonhentas, nem venenosas e não oferecem nenhum tipo de perigo às pessoas. Entretanto, devido às crendices populares, muitas vezes eles são mortos injustamente por causa dessa má fama sobre serem perigosos.

Da próxima vez que você encontrar esse animal, que tal o deixar ir embora sem incomodá-lo? Afinal, eles vivem bem embaixo dos nossos pés e nunca nos perturbam e dificilmente percebemos sua existência!

Figura 3. Amphisbaena acangaoba que foi descoberta na Caatinga brasileira. A) Vistal dorsal da cabeça do animal, com destaque para as escamas do dorso que parecem um capacete; B) Vista lateral da cabeça. Note na região cefálica que os olhos são bem diminutos e recobertos por uma escama, o que torna ainda mais difícil de notá-los; C) Animal depositado na coleção herpetológica.
REFERÊNCIAS

Colli G.R., Fenker J., Tedeschi L.G., Barreto-Lima A.F., Mott T., Ribeiro S.L.B. In the depths of obscurity: knowledge gaps and extinction risk of Brazilian worm lizards (Squamata, Amphisbaenidae). Biological Conservation. 2016.

Pough F.H., Janis C.M., Heiser J.B. A vida dos vertebrados. São Paulo: Atheneu. 2008. 750 p.

Ribeiro L.B., Gomides S.C., Costa H.C. A New Species of Amphisbaena from Northeastern Brazil (Squamata: Amphisbaenidae). Journal of Herpetology. 2018.

Ribeiro L.B., Gomides S.C., Costa H.C. A new worm lizard species (Squamata: Amphisbaenidae: Amphisbaena) with non-autotomic tail, from northeastern Brazil. Journal of Herpetology. 2020.

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