A meritocracia é uma balela
O ano de 2019 começou com dois discursos do novo presidente do Brasil. Como esperado, os conteúdos de suas falas oficiais traziam os pensamentos principais daqueles que o elegeram. Chama atenção o destaque dado à meritocracia.
Na última década, em nosso país, surgiu com uma força até então inédita a ideia de que conquistamos tudo por nosso mérito e que a meritocracia é o que deve reger nosso caminhar na vida. O conceito é até simples e bastante sedutor: todos nós podemos ser e ter o que quisermos, basta para isso nos esforçarmos e, então, conquistarmos o que queremos por nosso mérito próprio. Em inglês, esse é o conceito do self-made man.
Será que é assim mesmo que nossa sociedade funciona? Basta esforço e dedicação para conseguirmos o que queremos e merecemos? A meritocracia, de fato, é o caminho justo e ideal para a construção da sociedade?
As Ciências já ofereceram diversas respostas para essas perguntas e, prepare-se, todas se resumem em um inequívoco NÃO! A meritocracia é uma balela, uma falácia. Como na Odisséia, de Homero, a meritocracia é o canto da sereia, a melodia sedutora e inebriante que atraía os marinheiros encantados com sua beleza para o fundo do mar, para a morte.
As Ciências Sociais já revelaram há décadas a armadilha do conceito de mérito como estruturante da sociedade. E isso simplesmente porque existem diversos “vínculos invisíveis” que influenciam diretamente nossas conquistas e derrotas ao longo da vida. Uma criança que cresce em uma família que admira e valoriza a leitura e a cultura terá muito mais acesso a bens materiais do que outra criança que nasça privada delas. O sociólogo francês Pierre Bourdieu chama esses vínculos invisíveis de Capital Cultural.
Desde 1964, Bourdieu mostrou que a sociedade valoriza justamente esse tipo de capital, de modo que ele é determinante para a ascensão social. Isso significa que, independentemente do seu esforço, você necessariamente está ligado ao ambiente em que nasceu e cresceu, pois é ali que se formam as diversas possibilidades de ver e ser visto pelo mundo.
Esse é apenas um dos exemplos dos inúmeros laços invisíveis que nos determinam na vida. Não preciso nem falar dos mais óbvios, como o acesso às redes sociais mais influentes e poderosas, ou você acha realmente que o filho de um político ou de um empresário milionário têm as mesmas oportunidades que uma criança da classe média ou o filho do seu porteiro?
E a Neurociência? O que objetivamente se pode falar sobre isso?
Muita coisa.
As evidências são claras de que a meritocracia é uma balela. Um estudo publicado na Nature Neuroscience, em 2015, revelou que crianças de famílias de baixa renda têm cérebros menores e habilidades cognitivas diminuídas. Mais que isso, as evidências apontam que o comportamento infantil e as habilidades cognitivas estão ligadas às condições socioeconomicas que os envolvem, particularmente para aqueles que são pobres. Ou seja, mesmo antes de nascer já há uma clara desvantagem entre quem tem e quem não tem dinheiro!
Mais de 1000 crianças, de diversas cidades americanas, tiveram seus cérebros investigados com ressonância magnética. Os dados revelaram que crianças nascidas das família mais pobres, com renda menor que U$25.000 ano (algo em torno de R$8.000 ao mês) têm 6% a menos de superfície cerebral do que crianças vindas de famílias com a renda maior que U$150.000 (R$49.000 mensal). Nas crianças das famílias ainda mais pobres, alguns milhares de dólares a menos estavam correlacionados a grandes diferenças na estrutura cerebral. Os mais pobres apresentaram prejuízo em áreas cerebrais associadas à linguagem e tomada de decisão. Além das imagens dos cérebros, o desempenho em testes que medem habilidades cognitivas, como leitura e capacidade de memória, também estavam correlacionados com a renda dos pais, sendo pior para os mais pobres.
Além disso, um outro artigo importante, uma revisão publicada na Science em 2014, mostra o quanto a desigualdade é transmitida antes mesmo do nascimento! A saúde ao nascer é um grande preditor de nossas vitórias e derrotas na vida. As evidências revelam que a desigualdade faz com que os pobres tenham pior saúde no nascimento, justamente por estarem expostos a fatores ambientais nocivos, de modo que antes mesmo de nascer pesa sobre aqueles de baixa renda um destino bastante cruel.

A pobreza nos afeta tanto que diversos mecanismos biológicos e psíquicos garantem sua perpetuação em um sistema que acaba sendo justificado pela meritocracia. Portanto, é fácil ouvir coisas como “ele é pobre porque quer”, “basta se esforçar que consegue” e isso está absurdamente longe da verdade.
Em outro artigo publicado na Science[1], os pesquisadores mostraram que a pobreza tem consequências psicológicas e neurobiológicas específicas, que acabam por levar a comportamentos econômicos que fazem com que os pobres não consigam sair desta situação. A pobreza provoca aumento de cortisol, o hormônio do estresse. Também aumenta os estados afetivos negativos que impactam direta e negativamente a vida dessas pessoas. Isso as leva a terem maior aversão ao risco, menos atenção e tomadas de decisões econômicas ruins. Ou seja, são mecanismos psicológicos e biológicos que contribuem para a continuidade da pobreza.
Cuidado!
É preciso ressaltar que os pesquisadores deixam claro que estas evidências não querem dizer que os pobres são, de alguma maneira, naturalmente incompetentes ou são os culpados por sua pobreza. Pelo contrário! Na verdade eles mostram que a situação de pobreza causa determinados tipos de comportamento que levam à manutenção destas condições. Ou seja, não existe isso de “basta se esforçar”. O problema é muito mais severo que isso.
Entenda que não estou dizendo que o esforço não é importante. Nada disso. Sem ele, sem determinação e perseverança não se chega a lugar nenhum. A falácia reside no canto da sereia da meritocracia que diz que estamos em iguais condições e, por isso, quem se esforçar mais leva o prêmio.
As evidências científicas são claras: existe um abismo entre o rico e o pobre, de modo que mesmo que um pobre se esforce absurdamente, ele ainda está bem atrás na fila do sucesso. As dificuldades são inúmeras, desde as cognitivas até as de negação do acesso às oportunidades de crescimento. E não precisa de muito para que você perceba o quanto isso é real. Basta ver quantos ao seu redor se esforçam menos que você e alcançam patamares inatingíveis na sua vida. Os exemplos estão às toneladas! O que é preciso é fazer como Ulisses e tampar os ouvidos com cera, para não ouvir o canto encantador e mortal das sereias! Portanto, estude, aprofunde seus conhecimentos sobre o tema e perceba que não existe sociedade meritocrática.
Quanto tempo para um pobre atinja o nível médio de rendimento no Brasil?
A OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) revelou que seriam necessárias nove gerações para que os descendentes de um brasileiro entre os 10% mais pobres atingissem o nível médio de rendimento do país. NOVE GERAÇÕES! Faça você mesmo a conta para ver quantos anos isso leva!
A pesquisa traz a chamada “persistência da renda intergeracional”, que é uma medida do quanto o nível de rendimento dos filhos é determinado pelo dos pais. Nos países da OCDE a média dessa medida é 40%. Ou seja, se uma família tem rendimento duas vezes maior que de outra, seu filho terá, em média, renda 40% mais alta que a da criança que veio da família mais pobre. No Brasil, a persistência é de 70%! Mais de um terço das crianças que nascem entre os 20% mais pobres no Brasil fica na base da pirâmide, enquanto apenas 7% consegue chegar aos 20% mais ricos. Mérito? Você ainda acredita?

As duas mensagens finais desse texto
Primeiro, como já disse, não entenda que esses dados todos mostram que o esforço é desnecessário. Tampouco não confunda com a fala de que pessoas incompetentes (sem mérito) não deveriam ocupar lugar de destaque em suas profissões (e perceba que elas já ocupam…) O problema da meritocracia é justamente não revelar que são diversos outros fatores sociais que conduzem às vitórias e derrotas.
Segundo, não confunda essas evidências com a ideia de que o pobre é naturalmente um incapacitado. Pelo contrario, estamos em um sistema que faz com que a pobreza gere ainda mais pobreza e prenda o sujeito num ciclo de condições precárias absurdamente difíceis de serem vencidas.
Caso você esteja pensando naquele parente, amigo do primo do seu conhecido que era faxineiro e virou CEO de multinacional, esqueça. Mesmo que esse seja você. Exceções não interessam em uma sociedade democrática. O mito construído por essas exceções é que matem a ideia de meritocracia viva e faz você achar que se esforçando demais irá comprar o apartamento dos seus sonhos e sair do aluguel. O filho do Michel Temer tinha dois milhões de reais em imóveis em 2016. Ele tinha 7 anos na época. Deve ser porque ele merece e você não, certo?
REFERÊNCIAS
Aizer, A. Currie, J. The intergenerational transmission of inequality: Maternal disadvantage and health at birth. Science 2014
BOURDIEU, P. Os herdeiros: os estudantes e a cultura. Florianópolis: Editora da UFSC, 2014.
Haushofer, J. Fehr, N. On the psychology of poverty Science, 2014.
Noble, G. Et all Family income, parental education and brain structure in children and adolescents. Nature Neuroscience, 2015