Alison ChavesSaúde

Xenotransplantes: o fim da fila de transplantes

O maior problema das longas filas para transplantes é a escassez de órgãos para serem transplantados. Imagine como essas filas seriam mais ágeis se tivéssemos uma maneira de cultivar órgãos no laboratório com a finalidade de transplantá-los? A ficção já explorou essa ideia, como no filme “A ilha”. No filme, pessoas ricas pagavam para manter seus clones em uma base. O clone funciona como um cultivador de órgãos saudáveis. Esses órgãos seriam usados quando – e se – o proprietário requisitasse. Bem, esqueça esta ficção medonha. O que vamos falar aqui é sobre uma esperança real de reduzir as filas de transplantes: o xenotransplante.

O xenotransplante é um procedimento que consiste em transferir um órgão de um doador de uma espécie para um aceptor de outra espécie.

Vamos entender os resultados do trabalho do geneticista George Church, professor de Harvard e do Massachusetts Institute of Technology (MIT). O grupo desse cientista utiliza porcos geneticamente modificados para cultivar órgãos e transplantá-los em pacientes humanos. Vamos dedicar um olhar mais atento ao que fez o grupo.

Por que porcos?

Antes que você manifeste a reação “mas é um porco!”, preciso informar que já fazemos xenotransplantes na prática clínica há bastante tempo. Este é o caso do transplante de válvulas cardíacas de porcos para humanos. Neste caso as válvulas cardíacas de porcos são esterilizadas e passam por um tratamento para descelularização (Leia mais sobre este conceito). Isso garante que as válvulas não irão gerar uma resposta de rejeição.

O importante é saber que os porcos são mamíferos geneticamente muito próximos de nós. No entanto, isso não é tudo. Você poderia argumentar que os grandes primatas guardam muito mais similaridade genética conosco do que os porcos. Por outro lado, porcos são domesticados e nós, seres humanos, já dominamos a arte de criá-los em fazendas. Chimpanzés são mais complicados, não são domesticados e também não se reproduzem bem em cativeiro.

De modo geral, nosso genoma e os dos grandes mamíferos são muito semelhantes, isto porque a maior parte do metabolismo funciona de maneira conservada, ou seja, usa as mesmas proteínas para as mesmas funções. Se você olhar para porcos, chimpanzés e humanos as diferenças físicas são imediatamente notadas, mas se olhar para o genoma de uma única célula de cada um das três espécies fica bem mais difícil apontar as diferenças.

Como seria mais complicado utilizar nossos parentes primatas mais próximos como doadores de órgãos, nós utilizamos o melhoramento de porcos para a mesma finalidade.

E o que vem a ser melhoramento?

Embora nosso genoma seja algo similar, há pequenas sutilezas que se tornam um problema para um ser humano receber um órgão de um porco. Uma das mais importantes barreiras para o xenotransplante é o fato de que a maioria dos mamíferos, excetuando-se primatas, possuem uma enzima chamada alfa 1,3-galactosiltransferase, que sintetiza uma molécula chamada alfa 1,3-galactose ou α-Gal. Esta molécula de carboidrato cobre toda a membrana celular. Quando transplantado um órgão ao ser humano, o organismo logo lança uma forte resposta imunológica contra a α-Gal do órgão transplantado. Este problema já havia sido resolvido pelo grupo liderado por David Ayares, responsável por apresentar ao mundo o primeiro clone de porco que não possuía o antígeno α-Gal.

No entanto, ainda faltava resolver um impasse: os retrovírus endógenos. Retrovírus são vírus que podem sintetizar DNA usando o RNA como molde (o passo tradicional é a síntese de RNA a partir do DNA). Um exemplo é o vírus da imunodeficiência humana (HIV). Há uma discussão muito intensa e polêmica entre virologistas sobre as origens dos retrovírus. Isto porque temos em nosso genoma elementos genéticos que ficam saltando de um lugar para outro no genoma. Essas sequências genéticas são de retrovírus e como nos acompanham ao longo da evolução já são considerados endógenos. Para diferenciar essas sequências de retrovírus que se tornaram endógenos são chamadas de transposons. Todos os mamíferos possuem retrovírus endógenos e esses vírus se fixam no genoma quando são capazes de infectar uma célula germinativa (os gametas: óvulo e espermatozóide, por exemplo). Por isso, é preciso ficar atento para qualquer xenotransplante que não envolva descelularização.

A preocupação aqui é que esses retrovírus endógenos de porcos possam infectar o hospedeiro humano e gerar uma nova categoria de doença. Embora nenhum grupo ainda tenha demonstrado que esses retrovírus endógenos porcinos possam infectar um hospedeiro humano, já foi observado que a infecção acontece em cultura de células.

E foi este problema que o grupo de Church tentou resolver.

Por que esse trabalho é tão extraordinário?

O sequenciamento total do genoma dos porcos mantidos pelo laboratório de Church mostrou que haviam 62 “genes” correspondentes a retrovírus. Church havia encontrado seu alvo: precisava se livrar destes 62 “mau elementos”.

Em 5 de outubro de 2015, o grupo revelou que havia editado, com sucesso, os 62 genes de uma linhagem celular de porcos. Isto significa que os cientistas modificaram uma monocultura de células porcinas imortalizadas dentro de frascos mantidos em estufas de laboratório (in vitro). Células imortalizadas são células que sofreram algum tipo de modificação para se manter crescendo indefinidamente. O grupo usou um procedimento inédito para inativar todos os 62 genes na cultura celular, o método de edição CRISPR-Cas9, que você já leu a respeito aqui no Eureka (“Vírus gigantes e vivos” e “Edição gênica de bebês: o futuro chegou”).

Em 2017, o grupo publicou seus achados na prestigiada revista Science. O trabalho intitulado “Inactivation of porcine endogenous retrovirus in pigs using CRISPR-Cas9” causou tanto impacto que o Dr. Church e sua aluna fundaram juntos uma empresa que desenvolve porcos geneticamente modificados para cultivar órgãos e transplantá-los em humanos. Eles conseguiram inativar, nos animais, as mesmas 62 sequências de retrovírus endógenos de porcos que haviam inativado nas culturas celulares.

A novidade até então era apenas tecnológica. Pela primeira vez, alguém fazia inúmeras modificações de uma só vez em um único genoma em células imortalizadas. No entanto, ainda faltava resolver se células em cultura primária (ou seja, células que foram retiradas do hospedeiro e mantidas em cultura sem modificação de seu material genético) também sobreviveriam ao procedimento. Church retirou um punhado de fibroblastos (células da pele) dos porcos e fez a edição dos 62 genes necessários. Depois disso, transferiu os núcleos dos fibroblastos para células germinativas anucleadas (sem núcleos) e os implantou em uma porquinha. O grupo de cientistas mostrou que era possível manter as células primárias viáveis após edição. Além disso, eles mostraram que é possível gerar um animal livre dos retrovírus endógenos.

Agora a Ciência pode começar a pensar nos primeiros ensaios clínicos com pacientes.

 

REFERÊNCIAS

Phelps CJ, Koike C, Vaught TD, et al. Production of alpha 1,3-galactosyltransferase-deficient pigs. Science. 2003.

Niu D, Wei HJ, Lin L, et al. Inactivation of porcine endogenous retrovirus in pigs using CRISPR-Cas9. Science. 2017.

Belshaw R, Pereira V, Katzourakis A, et al. Long-Term Reinfection of the Human Genome by Endogenous Retroviruses. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America. 2004.

Nelson PN, Hooley P, Roden D, et al. Human Endogenous Retroviruses: Transposable Elements with Potential ? Clinical and Experimental Immunology. 2004.

Denner J. How Active Are Porcine Endogenous Retroviruses (PERVs)? Viruses. 2016.

 

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