Vírus gigantes e vivos
Desde o século XIX é bem aceito que a célula é a unidade estrutural básica de toda forma de vida. Essa teoria celular da vida pode ser simplificada no enunciado “se não tem ao menos uma célula, não está vivo”. Os vírus são considerados as menores e mais simples entidades microscópicas, que contém DNA ou RNA. São replicadores hábeis. No entanto, não são considerados organismos vivos já que são incapazes de se replicar independente de uma célula hospedeira. Já falamos aqui no Eureka sobre como os vírus podem se comunicar, agora é hora de falar dos vírus gigantes.
Em 2003, o grupo do Dr. Didier Raoult, sediado em Marseille, França, identificou um vírus gigante que infectava amebas. O estudo foi publicado em Março daquele ano na prestigiada revista Science. No ano seguinte, o grupo publicou o genoma do vírus. Com 1,2 milhões de pares de base, o genoma deste vírus é maior que o de algumas bactérias. Para se ter uma ideia do quanto o genoma do vírus é grande compare com esses exemplos:
- o genôma da bactéria Carsonella ruddii, por exemplo, possui 160 mil pares de bases;
- o genôma do vírus da imunodeficiência humana (HIV) possui aproximadamente apenas 9,7 mil pares de bases;
- o genôma da bactéria Haemophilus influenzae possui aproximadamente 1,8 milhões de pares de bases.
Esses vírus gigantes foram chamados de Mimivirus e hoje sabemos que existe uma grande diversidade deles. O termo gigante quer dizer que eles são visíveis em um microscópio de luz convencional. Acredite, isso é muito grande para um vírus. Embora o vírus descoberto por Didier tenha uma certa preferência por protistas, o Mimivirus foi isolado de uma paciente com pneumonia. Isso tem chamado a atenção de alguns pesquisadores porque esse grupo de vírus tem sido isolado de amostras de solo e água em diversos ambientes pelo planeta, incluindo no Brasil. Os vírus gigantes foram isolados da Lagoa da Pampulha (Minas Gerais) e do Rio Negro (Amazônas).
Essas descobertas levaram o grupo do pesquisador Jonathan Eisen, da Universidade da Califórnia, a propor, em um artigo de 2011 publicado no jornal PLoS One, a existência de um quarto domínio da vida.
Recordar é viver
Então, vamos lembrar deste consagrado conceito.
Para organizar e permitir a classificação das entidades vivas em nosso planeta, é conveniente agrupar os seres vivos por similaridades. Então dizemos que todas as bactérias fazem parte do domínio chamado “Eubactéria”. Além disso, todo ser vivo cujas células possuem núcleo compartimentalizado num envelope lipídico e compartilham certas características ribossomais, fazem parte do domínio chamado “Eukaria”. O terceiro domínio da vida, chamado “Archaea”, é composto pelo que há anos atrás considerávamos bactérias: os extremófilos. As arquéias são seres que geralmente habitam ambientes extremos de temperatura, sal, radiação, e outros estímulos altamente inóspitos para qualquer outra forma de vida. Embora morfologicamente semelhantes às bactérias, são bioquímica e geneticamente muito distintas tanto dos eucariotos quanto das bactérias e, por isso, mereceram um domínio próprio.
Em 2011, o Dr. Eisen propôs que aqueles vírus gigantes descobertos por Didier seriam o quarto domínio da vida. Aparentemente, isso resolve um problema importante e antigo da biologia, especialmente da microbiologia, o problema de decidir se vírus são uma forma de vida ou não. Naturalmente, não há consenso quanto à proposta de Eisen. Isso porque não há evidências suficientes de que vírus são uma forma de vida, ou melhor, não havia, até agora!
O Sputnik
Enquanto o grupo de Didier estudava os Mamavírus, que também infectam amebas, cientistas também descobriram uma outra partícula viral muito menor, batizada de Sputnik. Sabe o que esses pesquisadores descobriram sobre o Sputinik? Que ele é um vírus que infecta outros vírus, os vírus gigantes! Às vezes, pesquisadores podem ser bastante pragmáticos na tarefa de dar nomes. Então, uma vez que chamamos vírus que infectam bactérias de bacteriófagos, estes foram chamados de virófagos. Simples assim, e o repertório de virófagos tem crescido com a identificação de vírus como o Sputnik, Zamilon, Mavirus e o virófago do lago orgânico (OLV).
Bom, agora parece que esses vírus gigantes se assemelham muito mais àquilo que chamamos de ser vivo. Eles são até parasitados e adoecem. Isso seria suficiente para colocar uma pulga enorme atrás da orelha de quem separa coisas vivas de um lado e vírus de outro.
No entanto, o grupo de Didier não parou por aí com as descobertas. Após muito trabalho duro, em fevereiro de 2016, o grupo publicou mais novidades sobre esses vírus gigantes. Tudo indica que eles possuem uma espécie de sistema imune adaptativo primitivo, muito similar ao das bactérias.
CRISPR/Cas9
A propósito, você sabia que bactérias tem um sistema imune adaptativo? Chamamos esse sistema de CRISPR/Cas9 (do inglês, Clustered Regularly Interspaced Short Palindromic Repeats, ou Repetições Palindrômicas Curtas Agrupadas e Regularmente Interespaçadas). O sistema CRISPR/Cas9 serve para reconhecer uma infecção viral. Também serve para memorizar o agente infeccioso e proteger a bactéria contra uma próxima infecção pelo mesmo bacteriófago (inclusive esse sistema vem sendo já empregado em bebês humanos). Um sistema muito semelhante tem sido chamado pelo Dr. Didier de MIMIVIRE (do inglês, Mimivirus Virophage Resistance Element) e está presente nos vírus gigantes. O sistema MIMIVIRE funciona para proteger os vírus gigantes da infecção por outros vírus menores, como o Sputnik ou o Zamilon.
E aí, considerando essas descobertas, o que você acha da proposição de um quarto domínio da vida?
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REFERÊNCIAS
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Levasseur A, Bekliz M, Chabrière E, Pontarotti P, La Scola B, Raoult D. MIMIVIRE is a defence system in mimivirus that confers resistance to virophage. Nature. 2016.
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