Quando a mão do homem altera a rota da evolução
A evolução da vida no planeta geralmente leva milhares de anos. Isso porque, é necessário muito tempo para que possam ocorrer alterações notavelmente diferentes nos organismos. Normalmente, o processo evolutivo que afeta uma comunidade inteira ocorre com maior intensidade pela influência de eventos geológicos marcantes ou alterações climáticas profundas, como a provocada pela emissão de poluentes das indústrias atualmente. Além disso, estudos experimentais mostraram que a rota da evolução pode ser alterada pela ação antropogênica (causadas pela ação do homem) em um intervalo de tempo muito mais curto.
O estudos que mostram que a mão do homem altera a rota da evolução incluem um recente estudo de pesquisadores da Universidade de Brasília e outros estudos de pesquisadores da Harvard University (para mais detalhes veja referências ao final do texto). E qual o resultado dessas mudanças rápidas para a vida no planeta? Na verdade, o resultado dessas alterações em longo prazo ainda não é conhecido. A evolução é um evento complicado que fica praticamente impossível prever de forma precisa o que será afetado no futuro próximo ou mais distante.
As usinas hidrelétricas alteram os ambientes naturais de forma catastrófica e rápida. Isso causa muitos problemas nos ambientes tropicais, como no Brasil. Elas alagam áreas de vegetação natural, alteram cursos hídricos (físico e quimicamente), emitem gases de efeito estufa, isolam organismos em ilhas formadas nesses lagos e impedem a movimentação de organismos aquáticos ao longo do curso da água.

Dados científicos sobre os processos evolutivos rápidos ocasionados pela alteração ambiental drástica de uma paisagem são raros. Isso acontece ou pela falta de pesquisas nessa área ou realmente pela falta de oportunidade do registro dos eventos.
Entretanto, pesquisadores da Universidade de Brasília (UNB), (liderados por Mariana E. de Amorim) junto a colegas do exterior detectaram esse processo em uma pesquisa na região onde foi construída a Usina Hidrelétrica Serra da Mesa, no estado de Goiás. Criada em 1996, esse reservatório possui cerca de 300 “ilhas” dentro da represa, que são remanescentes daquelas partes onde era um contínuo de vegetação nativa. Como o terreno não era completamente plano, somente as partes mais altas não foram inundadas. Consequentemente essas áreas viraram essas “ilhas” dentro do lago.
Muitas espécies de lagartos existentes nessas ilhas foram extintas ao longos dos anos. Isso aconteceu provavelmente por falta de alimentos adequados, competição com outras espécies e outros fatores ecológicos. Provavelmente outras espécies de vertebrados e invertebrados tiveram o mesmo destino trágico, sucumbindo após a alteração do ambiente natural pelo homem. Algumas poucas espécies resistiram, sobretudo as menores, assim como uma parte das espécies de invertebrados.
Dentre essas espécies, está o pequeno lagarto chamado Gymndactylus amarali, um parente das lagartixas¸ Este pequeno lagarto tem cerca de 5 cm e se alimenta de pequenos invertebrados. Os pesquisadores da UNB observaram que os lagartos que ficaram isolados nessas ilhas tinham uma dieta composta de cupins maiores que o esperado em populações naturais de vegetação contínua (não isoladas em ilhas artificiais). Note que a dieta dos lagartos que vivem nas áreas ao redor do lago consiste de presas menores.
O que isso afeta então a biologia dessa espécie?
A grande questão é que os cupins maiores são muito grandes para a boca dessa espécie e de difícil deglutição. O grande achado dessa pesquisa em Goiás foi a relação do tamanho da cabeça dos animais presentes nas ilhas em relação ao tamanho do corpo. Elas são proporcionalmente maiores em comparação com aos animais distribuídos em populações naturais do Cerrado do Brasil Central. Os animais de ilhas apresentam cabeças maiores! E cabeças maiores têm bocas maiores, que conseguem engolir presas maiores. Pronto! O problema do cardápio foi resolvido. Dessa forma, esses animais podem comer os cupins normalmente encontrados nessas ilhas que foram artificialmente criadas pelo enchimento da usina hidrelétrica.
Em apenas 15 anos de isolamento nas ilhas, e separação completa das populações não isoladas, esse lagartos apresentaram cabeças 4% maiores que dos lagartos de populações naturais do Cerrado. Isso facilitou o consumo de cupins. As populações naturais possuem indivíduos com diferentes características: uns são mais magros, outros mais gordos, alguns com membros maiores, outros menores… Pode ocorrer de alguns conseguirem deixar mais descendentes que outros… Fatores ambientais podem limitar o sucesso de alguns indivíduos e favorecer outros . E foi isso que aconteceu com nossos lagartinhos náufragos dessas ilhas artificiais.
Outro fato surpreendente foi que em todas as ilhas artificiais essa mudança significativa ocorreu de forma simultânea.
Em uma ilha que durante algum tempo ainda apresenta contato com o “continente” essa mudança não foi tão evidente. Muito provavelmente porque ocorria a migração e fluxo gênico entre a ilha e o “continente”. Quatro espécies de lagartos maiores que consomem cupins se extinguiram nessas ilhas. Por outro lado, esses lagartos continuaram existindo na área de vegetação contínua ao redor. Logo, essa presa se tornou disponível em grande quantidade para esses pequenos lagartos de ilha. Em comparação, no continente essas presas eram disputadas por espécies maiores. O pequeno lagarto provavelmente não tinha muito acesso a ela. Animais com a cabeça maior também tem a vantagem de consumir presas maiores, sem ter que arcar com os custos energéticos de manter um corpo maior. Além disso, uma boca grande dá acesso a uma diversidade de tamanhos de presas também maior.
Já existem outros exemplos de evolução rápida que ocorreram em vertebrados na natureza, por causa de invasão de espécies.
Uma das forças que pode influenciar é a coexistência de espécies proximamente relacionadas. Em pequenas ilhas da Flórida, nos Estados Unidos, a invasão de uma espécie de lagarto (Anolis sangrei, nativa de Cuba, Bahamas e outras ilhas próximas do Caribe) acaba afugentando a espécie nativa (Anolis carolinensis) para partes mais altas das árvores. Nessa espécie menor e fugitiva, foi constatado o aumento da média de tamanho de certas estruturas nos pés que ajudam na vida arborícola em pouco tempo. Aqueles animais que apresentavam estruturas maiores nos pés foram selecionados pelas pressões ambientais. E isso tudo ocorreu em poucas gerações (cerca de 20). Com essas almofadas desenvolvidas nos pés, o lagarto agarra com mais segurança os galhos mais finos e escorregadios. Em ilhotas onde não ocorreu a invasão, não houve mudanças significativas no tamanho médio das almofadas dos pés.
Mais do que alterar a evolução dos indivíduos, as mudanças ambientais criadas pelo enchimento de reservatórios de hidrelétricas também alteram a relação ecológica dentro da comunidade existente na região. Na Usina Hidrelétrica de Balbina, no Amazonas, o reservatório criado pela barragem do rio Uatumã engloba uma área de cerca de 444 km2. Esse reservatório possui 3546 ilhas formadas após o enchimento. Essa usina é considerada um dos maiores desastres ambientais do Brasil. Isso porque ela emite tantos gases de efeito estufa quanto termelétricas que produzem a mesma quantidade de energia elétrica.
Além disso, alagou uma área muito grande, para produzir proporcionalmente pouca energia. Uma pesquisa realizada em 25 dessas ilhas, mais coletas nas áreas na margem do reservatório (áreas de vegetação contínua) mostram que há uma considerável redução na biodiversidade das ilhas e consequente prejuízo ecossistêmico. Portanto, precisamos repensar a ideia de usina hidrelétrica como energia limpa. Hoje, já temos dados contundentes que demonstram todo o seu potencial danoso ao meio ambiente em curto e longo prazo.
Portanto, é evidente o impacto que a ação humana causa na natureza, seja de curto ou longo prazo. Por que não trocamos aquele velho discurso sobre qual planeta vamos deixar para nossos filhos para: “Qual planeta vamos viver daqui há alguns anos?
REFERÊNCIAS
Amorim MA, Schoener TW, Santoro GRCC, Lins ACR, Piovia-Scott J, Brandão RA. Lizards on newly created islands independently and rapidly adapt in morphology and diet.
Martins A. O que é a ‘evolução rápida’, que transformou um lagarto brasileiro em apenas 15 anos. http://www.bbc.com/portuguese/geral-40871498 .2017.
Palmeirim AF, Vieira MV, Peres CA. Non-random lizard extinctions in land-bridge Amazonian forest islands after 28 years of isolation. Biological Conservation 214 (2017) 55–65. 2017.
Stuart YE, Campbell TS, Hohenlohe PA, Reynolds RG, Revell LJ, Losos JB. Rapid evolution of a native species following invasion by a congener. Science. 346(6208):463-62. 2014.