Alison ChavesSaúde

O Zika vírus e os riscos de transmissão vertical

Você já deve ter ouvido falar sobre o Zika vírus. Aquele vírus transmitido pelo mesmo mosquito que também pode carregar o vírus da dengue e que alarmou o mundo todo nos últimos anos.

Desde que apareceram os primeiros relatos de problemas ligados ao desenvolvimento em recém nascidos de mulheres infectadas pelo vírus, temos procurado entender coisas sobre o Zika. O Zika é o responsável pelos casos notificados de microcefalia? Existe transmissão vertical, isto é, o vírus passa da mãe para o feto? Que outras formas de transmissão são conhecidas? Que formas de prevenção e/ou tratamento podemos lançar mão? Felizmente, hoje dispomos de respostas para todas estas perguntas. A relação causal entre o vírus e os casos de microcefalia está bem estabelecida e as evidências científicas estão reforçando essa ligação a cada dia. Esta ligação já sugere a possibilidade de transmissão vertical. E como é que sabemos disso? Como sabemos que o vírus da Zika consegue infectar o feto e causar danos tão devastadores?

Aqui vai uma atualização sobre o tema!

Para responder essas perguntas, o grupo da neuroimunologista Karin Peterson, do Instituto Nacional de Saúde dos Estados Unidos (do inglês, National Institutes of Health, NIH), desenvolveu um modelo de infecção pelo vírus Zika em camundongos. O que o grupo da Dr. Karin fez foi produzir camundongos que não expressam dois grupos de interferons (IFN), moléculas sinalizadoras do sistema imunológico. Essa manipulação foi necessária porque os camundongos tem uma resposta de IFN tipo I muito mais eficiente que os humanos, o que os protege naturalmente da infecção.

De forma resumida, podemos dizer que interferons são moléculas produzidas por quase todos os tipos de células do nosso corpo (com exceção do IFN tipo II, que é produzido apenas pelas células do sistema imune). Essas moléculas nos protegem contra infecções virais e outros tipos de parasitas. Sabe aqueles sintomas chatos da gripe, aqueles que te deixam de cama? Pois é, pode colocar uma boa parte da culpa nos IFNs. Quanto maior é sua capacidade de responder à infecção mais você sente a doença.

Voltando ao trabalho científico, é importante salientar que nós, humanos, produzimos três grupos desses interferons: IFN tipo I, tipo II e tipo III. O Zika é capaz de suprimir a resposta imune mediada por IFN do tipo I e, assim, estabelecer uma infecção com sucesso. Por isso, o grupo da Dr. Karin resolveu deletar um receptor de IFN tipo I de alguns camundongos para dar espaço à infecção e mimetizar o que acontece em seres humanos. Isso tornou os animais susceptíveis à infecção e, agora, temos um modelo para estudar a transmissão nos animais de experimentação.

No mesmo estudo, os pesquisadores mostraram que a incidência de transmissão sexual entre camundongos machos e fêmeas foi maior que 50% e, quando as fêmeas engravidaram, o vírus foi detectado nos tecidos uterino e placentário. Já a transmissão vertical foi aleatória, nem todos os fetos apresentaram níveis detectáveis do vírus, mesmo que a mãe tivesse o vírus na placenta.

E por que alguns fetos não apresentam o Zika vírus?

É uma dúvida razoável e a ciência ainda não desvendou toda essa questão, mas podemos levantar algumas hipóteses. A primeira, e mais intuitiva das hipóteses, é que alguns animais podem ser mais ou menos efetivos na resposta contra o vírus. A segunda, e mais técnica das hipóteses, seria que, embora os animais deficientes IFN dos tipos I e II não sejam capazes de gerar uma resposta adaptativa porque não produzem células do sistema imune, eles ainda tem IFN do tipo III para combater a infecção.

Recomendo fortemente que você veja a figura de divulgação do NIH. Nela você verá que há uma carga viral abundante no lado materno da placenta. O lado fetal é praticamente livre do vírus.

A placenta age como uma barreira física e imunológica entre os compartimentos materno e fetal. Além disso, ela também protege o feto em desenvolvimento da transmissão vertical dos vírus. Na placenta humana, a primeira linha de proteção fetal é o que chamamos sinciciotrofoblasto.

O sinciciotrofoblasto é uma camada de células especializadas que cobre toda a superfície da placenta. Ele, literalmente, invade a parede uterina para estabelecer o que chamamos circulação materno-fetal. Um trabalho recente do grupo da Dr. Carolyn Coyne, da Universidade de Pittsburgh, mostrou que células trofoblásticas humanas primárias, isoladas de placentas maduras, são refratárias (resistentes) à infecção por duas linhagens do vírus Zika. Essas duas linhagens tem origem na África e na Ásia. Elas exibem mais de 99% de similaridade com a linhagem atualmente circulante no Brasil. A Dr. Carolyn mostrou também que o meio condicionado obtido das culturas de células trofoblásticas humanas primárias protegeram outros tipos de células da infecção pelo Zika por meio da liberação de IFNλ1 (um IFN do tipo III).

.

Neste ponto, permita-me voltar ao aspecto mais técnico. Isso pode nos ajudar a entender as razões pelas quais alguns animais transmitiram verticalmente o vírus e outros não. O mecanismo descrito pelo grupo da Dr. Carolyn Coyne sugere que, para o Zika infectar sinciciotrofoblastos – aquelas células que recobrem a placenta – ele deve superar restrições impostas pelo IFNλ1 e outros fatores antivirais específicos. Além disso o vírus deve ter acesso ao compartimento fetal por um mecanismo que não seja a infecção do sinciciotrofoblastos, pelo menos nos estágios mais tardios da gestação.

Zika Vírus

Percebeu? Grupos distintos de cientistas mostraram evidências de que o vírus é capaz de infectar células da placenta (especialmente o lado materno). Além disso, os cientistas também mostraram que o vírus pode ser transmitido verticalmente e que temos mecanismos imunológicos importantes para combater a infecção. No entanto, ainda parece que a placenta, com todo seu arsenal de IFN, é efetiva em proteger o feto.

De onde vem o vírus então?

Embora o vírus já tenha sido detectado no lado fetal da placenta, há quem sugira outros mecanismos para a invasão.

O Dr. David Schwartz mostrou que não há sinais de inflamação na placenta infectada. Além disso, observou-se alteração na placenta decorrente da intensa proliferação de macrófagos infectados pelo Zika. Macrófagos são as primeiras células do sistema imunológico que ficam nos tecidos fagocitando (destruindo) possíveis agentes invasores. Após digerí-los, “apresentam-os” a células do sistema imune adaptativo (células T) que irão iniciar uma resposta mais robusta e duradoura. Ainda nessa linha, um grupo esloveno conduziu a autópsia de um feto cujo exame ultrassonográfico atestou microcefalia e calcificações cerebrais e na placenta. O grupo de Avšič Županc conseguiu recuperar o genoma completo do ZIKV a partir de amostras do cérebro do feto.

Esses resultados são suportados por achados em culturas de células do tecido placentário humano. Também são corroborados por estudos em modelos de infecção em camundongos e a detecção do vírus nas placentas humanas. Adicionalmente, existe evidência da transmissão vertical associada à microcefalia em macaco Rhesus. Neste modelo, foi possível recuperar o vírus de todos os fetos de mães infectadas. Temos, portanto, boas razões para manter um alerta sobre a infecção grave pelo ZIKV durante a gestação. Especialmente no período mais crítico para o desenvolvimento fetal, o primeiro trimestre.

Este é um texto informativo para você entender um pouco do que nós pesquisadores sabemos a respeito do vírus. Os cuidados e prevenção são mais simples do que se pode imaginar. Basta lembrar de toda a campanha realizada nos períodos chuvosos pedindo para não deixar água parada em recipientes como pneus, garrafas, baldes, vasos e calhas. Além disso, também devemos evitar o acúmulo de lixo nos quintais. Usar mosquiteiro, principalmente nas regiões norte e nordeste aonde o Aedes aegypti nos perturba o sono durante o ano inteiro. Mulheres grávidas devem realizar o pré-natal com o máximo de disciplina para garantir todos os exames e atenção médica.

Agora que você está em dia com as descobertas sobre o Zika vírus, repasse a informação para frente.

Nos ajude a cuidar de quem mais precisa.

 

REFERÊNCIAS

Winkler CW, Woods TA, Rosenke R, Scott DP, Best SM, Peterson KE. Sexual and Vertical Transmission of Zika Virus in anti-interferon receptor-treated Rag1-deficient mice. Scientific Reports. 2017.

Bayer A, Lennemann NJ, Ouyang Y, et al. Type III Interferons Produced by Human Placental Trophoblasts Confer Protection against Zika Virus Infection. Cell Host and microbes. 2016.

Mlakar J, Korva M, Tul N, et al. Zika Virus Associated with Microcephaly. The New England Journal of Medicine. 2016.

Schwartz DA. Viral infection, proliferation, and hyperplasia of Hofbauer cells and absence of inflammation characterize the placental pathology of fetuses with congenital Zika virus infection. Archives of Gynecology and Obstetrics. 2017.

Sheridan MA, Yunusova D, Balaraman V, et al. Vulnerability of primitive human placental trophoblast to Zika virus. PNAS. 2017.

 

 

Facebook Comments Box
COMPARTILHAR:

One thought on “O Zika vírus e os riscos de transmissão vertical

Fechado para comentários.