Microorganismos são bons em diagnosticar doenças
Você sabia que aproximadamente metade das células em nossos corpos são microorganismos? Uma estimativa grosseira sugere que temos algo próximo de 30 trilhões de células oriundas das divisões celulares que sucedem a fecundação e outras 39 trilhões são bactérias. Curioso, não? Você vai encontrar mais informações sobre isso aqui mesmo no Eureka brasil no texto da Alice sobre microbiota intestinal, por exemplo.
Esses microorganismos desempenham muitas funções importantes, seja mantendo nosso metabolismo dentro da normalidade, seja impedindo o crescimento de bactérias patogênicas. Com o avanço dos estudos no campo do microbioma humano, outros interesses têm aparecido. E se aquelas bactérias puderem nos dizer algo sobre o habitat delas, o corpo humano? E se essa informação nos ajudasse a fazer o diagnóstico de eventos importantes como doenças?
Longe de ser mera conjectura, essas perguntas têm respostas e podem ser muito animadoras para a medicina.
O grupo da Dra Sangeeta Bhatia no Massachussets Institute of Technology (MIT), por exemplo, utilizou a cepa de Escherichia coli Nissle, bactéria conhecida por sua aplicação como probiótico, para gerar um método diagnóstico não invasivo capaz de identificar metástases no fígado. Os tumores de cólon e pâncreas tendem a gerar metástases para o fígado. Por isso, qualquer método não invasivo – isto é, que não exija abrir o paciente ou retirar um pedaço dele – representa um avanço no esforço para o diagnóstico e tratamento.
É antiga a informação de que bactérias podem colonizar o microambiente de tumores. Isto porque, dentro de massas tumorais, a atividade do sistema imune está suprimida, o que permite o crescimento de bactérias ali, mas não no tecido saudável. O desafio, então, tem sido conseguir colocar uma bactéria não patogênica no órgão alvo que seja capaz de emitir alguma informação dentro daquele microambiente.
O caminho das pedras
No campo da biologia molecular usamos o termo gene repórter para fazer referência a um gene capaz de fornecer informações sobre um dado evento que acontece nas células. Um dos sistemas mais conhecidos dessa natureza é o LacZ em bactérias E. coli. Essas bactérias expressam a enzima β-galactosidase. Esta enzima degrada o dissacarídeo lactose em dois açúcares mais simples, a glicose e a galactose, algo de que podemos tirar proveito. O que o grupo sediado no MIT fez foi colocar um plasmídeo (segmento de DNA circular) contendo o LacZ dentro da E. coli Nissle. Em seguida, as bactérias modificadas foram administradas via oral, como aquele yakult maroto, para camundongos. As bactérias foram capazes de colonizar aproximadamente 90% das células metastáticas tumorais no fígado dos camundongos. Lembre-se que essas bactérias não conseguem colonizar o tecido normal, dado que lá a atividade do sistema imune é normal.
Para fazer o diagnóstico, basta injetar um composto contendo uma proteína fluorescente (luciferina) ligada à galactose. Na prática, estamos ofertando para a enzima um substituto da lactose. Esse conjugado de luciferina-galactose funciona como substrato para a enzima β-galactosidase que o cliva, liberando a luciferina, que é excretada na urina. Finalmente, um teste de detecção de fluorescência na urina é capaz de medir a quantidade do produto excretado. O desenvolvimento rendeu convite para uma conferência no TED Talks (Veja aqui).
O caminho da luz
E se, além de tumores, as bactérias fossem capazes de diagnosticar outros distúrbios em nosso organismo? Foi o que testou o grupo de Timothy Lu, também do MIT, usando a mesma E. coli Nissle como probiótico. Desta vez, no entanto, o grupo modificou a E. coli para detectar sangramentos gástricos.
Dentro das hemácias, as células vermelhas do sangue, existem proteínas contendo um grupo chamado heme. Quando as hemácias são destruídas, o que ocorre durante sangramentos no ambiente ácido do estômago, por exemplo, os grupos heme são despejados na parede do estômago. Este é um evento comum em quadros que geram úlceras estomacais (gastrite, câncer, etc.). A ideia, então, foi gerar uma linhagem de E. coli que emite bioluminescência quando entra em contato com grupos heme.
Essas bactérias foram colocadas dentro de cápsulas contendo um micro-sensor. Esse micro-sensor é capaz de captar luz e emitir um sinal via Wi-Fi para um dispositivo, como um celular. Isto informa quando ocorre um sangramento. Basta ingerir uma cápsula, esperar alguns minutos e ligar o celular ou computador para receber o sinal de alerta quando há sangramento. O grupo está aperfeiçoando o dispositivo para torná-lo capaz de oferecer medidas quantitativas e permitir a avaliação da extensão do sangramento, por exemplo.
Estas ideias são inovadoras e abrem caminho para diversos outros sensores bacterianos como ferramentas diagnósticas minimamente invasivas. Basta imaginar que o circuito molecular pode ser modificado para reconhecer virtualmente qualquer alvo e emitir o sinal fluorescente.
REFERÊNCIAS
Abbott A. Scientists bust myth that our bodies have more bacteria than human cells. Nature News. 2016.
Mimee M, Nadeau P, Hayward A, Carim S, Flanagan S, Jerger L, Collins J, McDonnell S, Swartwout R, Citorik RJ, Bulović V, Langer R, Traverso G, Chandrakasan AP, Lu TK. An ingestible bacterial-electronic system to monitor gastrointestinal health. Science. 2018.
Danino T, Prindle A, Kwong GA, Skalak M, Li H, Allen K, Hasty J, Bhatia SN. Programmable probiotics for detection of cancer in urine. Science Translational Medicine. 2015.