Da malária ao câncer
Os caminhos da ciência nem sempre são lineares. Algumas grandes descobertas foram resultado de puro acaso. Um exemplo clássico é a descoberta da penicilina pelo Prêmio Nobel, o cientista Alexander Fleming. Ele percebeu que as bactérias morriam quando estavam contaminadas pelo fungo Penicillium. Hoje temos outro exemplo dos caminhos sinuosos da ciência que pode levar o conhecimento da malária ao câncer. O professor Ali Salanti estudava a malária, e descobriu que o parasito Plasmodium poderia reconhecer células de tumores.
A malária é um grave problema de saúde causado pelo parasita Plasmodium. A infecção ocorre através da picada do mosquito Anopheles e causa surtos de febre, delírios, taquicardia e dores no corpo. O parasita infecta células vermelhas do sangue – os eritrócitos – podendo causar anemia e, no caso de mulheres grávidas, interrupção da gestação. Ali Salanti buscava uma vacina contra malária que fosse efetiva para mulheres grávidas.
Sabe-se há muitos anos que o Plamodium, por acumular no tecido placentário, induz uma resposta inflamatória que, em última análise, é responsável pelos riscos de interrupção da gestão. Durante sua pesquisa, o professor Salanti, se deparou com uma proteína do Plasmodium que podia atracar o parasita às células na placenta. Essa proteína, chamada VAR2CSA, se liga a um açúcar específico, presente na superfície das células da placenta: a condroitina sulfato oncofetal (ou ofCS).
A história mudou de rumo quando o pesquisador descobriu que células tumorais também tem ofCS na sua superfície. A pergunta que surgiu foi “será que este açúcar poderia ser um alvo para terapia contra tumores?”.
A ideia do pesquisador era conjugar uma toxina junto à proteína VAR2CSA. Quando a VAR2CSA se ligasse à ofCS, como acontece com o parasita causador da malária, a toxina chegaria até o tumor. A proteína VAR2CSA funcionaria como um cavalo de Tróia, levando a toxina para matar as células tumorais.
Ao tratar camundongos portadores de tumores com essa estratégia, os resultados foram animadores. A proteína VAR2CSA levou a toxina até as células tumorais com boa especificidade.
O passo seguinte foi usar a VAR2CSA também para diagnóstico de tumores.
Os pesquisadores já haviam demonstrado que esta proteína se ligava a maiora das linhagens tumorais que mantemos em laboratório, bem como tumores de diferentes tecidos. Então, eles usaram uma versão da VAR2CSA conjugada com uma microesfera magnética.
A ideia é simples, mas muito inteligente: VAR2CSA seria uma isca para “pescar” células tumorais. Uma vez no sangue, a proteína ligada a microesfera se liga a células tumorais circulantes. Ao coletar o sangue do paciente, as esferas podem ser coletadas com o auxílio de um magneto. Caso tenham sido “pescadas” células tumorais, elas podem agora ser analisadas em laboratório.
Nosso corpo tem condroitina sulfato em tecidos saudáveis, mas o grupo identificou uma isoforma oncofetal, específica para tumores e tecido placentário. Portanto, o método é extremamente útil e promissor para diagnosticar tumores e até mesmo capturar amostras de células tumorais circulantes e metastáticas para serem analisadas. Em primeira análise, a única restrição para este método diagnóstico seriam mulheres grávidas, já que apresentam ofCS na placenta. Ainda assim, ofCS parece estar confinada no tecido da placenta e, portanto, não deveria interferir no diagnóstico de biópsias líquidas, por exemplo.
REFERÊNCIAS
Agerbæk MØ, Bang-Christensen SR, Yang MH, Clausen TM, Pereira MA, Sharma S, Ditlev SB, Nielsen MA, Choudhary S, Gustavsson T, Sorensen PH, Meyer T, Propper D, Shamash J, Theander TG, Aicher A, Daugaard M, Heeschen C, Salanti A. The VAR2CSA malaria protein efficiently retrieves circulating tumor cells in an EpCAM-independent manner. Nature Communications, 2018.
Salanti A, Clausen TM, Agerbæk MØ, Al Nakouzi N, Dahlbäck M, Oo HZ, Lee S, Gustavsson T, Rich JR, Hedberg BJ, Mao Y, Barington L, Pereira MA, LoBello J, Endo M, Fazli L, Soden J, Wang CK, Sander AF, Dagil R, Thrane S, Holst PJ, Meng L, Favero F, Weiss GJ, Nielsen MA, Freeth J, Nielsen TO, Zaia J, Tran NL, Trent J, Babcook JS, Theander TG, Sorensen PH, Daugaard M. Targeting Human Cancer by a Glycosaminoglycan Binding Malaria Protein. Cancer Cell, 2015.