Eureka Entrevista: ciência brasileira indica Ayahuasca como anti-depressivo
Um recente estudo, desenvolvido por cientistas brasileiros, mostrou que a Ayahuasca, bebida alucinógena utilizada em celebrações espirituais, tem propriedades anti-depressivas. O Eureka Brasil entrou em contato com os autores do estudo para trazer mais informações diretamente da fonte.

Fernanda Palhano é engenheira com mestrado e doutorado em Neurociências (Instituto do Cérebro-Universidade Federal do Rio Grande do Norte – UFRN). No mestrado, utilizou ressonância magnética funcional (fMRI) para avaliar indivíduos sob efeito agudo da ayahuasca. No doutorado, investigou o potencial terapêutico da Ayahuasca na depressão resistente ao tratamento. Se interessa por psicodélicos, psiquiatria e técnicas de neuroimagem.

Dráulio Barros de Araújo é professor do Instituto do Cérebro (ICe), da UFRN. Possui graduação e mestrado em Física. Possui doutorado em Física Aplicada à Medicina e Biologia pela Universidade de São Paulo (USP), Ribeirão Preto. Desde 2006 tem estudado os efeitos antidepressivos da Ayahuasca e as bases neurais dos seus efeitos.
As respostas a seguir (em itálico) foram compostas por ambos os pesquisadores.
Conte um pouco como surgiu a ideia de se utilizar a Ayahuasca como anti-depressivo?
A depressão é um transtorno de humor que atinge mais 300 milhões de pessoas no mundo, segundo a Organização Mundial de Saúde. Um terço desses pacientes não respondem adequadamente aos antidepressivos convencionais. Ou seja, eles continuam com sintomas depressivos mesmo após o tratamento com 2 antidepressivos diferentes. Além disso, os antidepressivos podem demorar algumas semanas para começar a fazer efeito.
Ayahuasca é palavra em Quechua que pode ser traduzida como “videira das almas”. Essa bebida é produzida comumente pela decocção de duas plantas, a Psychotria viridis e a Banisteriopsis caapi. A Ayahuasca é tradicionalmente utilizada com propósitos espirituais e de cura por povos indígenas da região amazônica. Ela também é o sacramento de religiões sincréticas brasileiras, como o Santo Daime, a União do Vegetal (UDV) e a Barquinha.
A Ayahuasca contém a triptamina psicodélica N,N-DMT, e inibidores da enzima monoamina oxidase (MAO), como a harmina e harmalina. Os inibidores de MAO presentes na bebida previnem que a N,N-DMT seja degradada no sistema gastrintestinal. Isso permite que ela atravesse a barreira hematoencefálica e produza efeitos no sistema nervoso central.
Os efeitos agudos da Ayahuasca duram cerca de 4 horas. Vão desde alterações sensoriais, como sensação de formigamento e leveza no corpo, imagens mentais vívidas na forma de figuras geométricas, caleidoscópicas, ou complexas (como em um sonho), mudanças na percepção dos sons, mudanças no fluxo de pensamento, alteração na percepção de tempo e espaço, riso ou choro. Também pode provocar náusea, vômito e diarreia.
A ideia de se testar a Ayahuasca como antidepressivo surgiu a partir de relatos de pessoas que sofriam de depressão. Também fundamentou-se em estudos epidemiológicos com membros de religiões ayahuasqueiras. Além disso, as principais substâncias ativas na ayahuasca modulam o sistema serotonérgico, que tem sido o principal alvo de tratamentos com antidepressivos.
O que foi mais relevante nos achados do trabalho publicado em junho de 2018 na revista Psychological Medicine?
Diferente dos antidepressivos clássicos, observamos efeito antidepressivo rápido. Já no primeiro dia após a sessão observamos diminuição significativa dos sintomas de depressão nos pacientes que beberam Ayahuasca, quando comparados aos que beberam placebo. Além disso, esse efeito permaneceu e foi ainda mais robusto 7 dias após a sessão, quando 64% dos pacientes do grupo Ayahuasca apresentaram resposta clínica, enquanto apenas 27% dos pacientes do grupo placebo responderam positivamente.
Quais seriam os mecanismos neurais dessa interação? Vocês acreditam que alguma substância da planta é mais efetiva do que outras?
Os mecanismos por trás do efeito antidepressivo ainda não estão claros.
Uma hipótese seria o efeito acontecer pela ação dos inibidores de MAO, tendo em vista que esse é o princípio ativo antidepressivos clássicos. A N,N-DMT também é agonista serotonérgico, ou seja atua diretamente em receptores de serotonina no cérebro, outro alvo importante dos tratamentos antidepressivos tradicionais. Ainda, a N,N-DMT atua em receptores do tipo sigma-1, que parecem estar envolvidos na etiologia da depressão.
Porém, a argumentação puramente farmacológica não parece explicar os efeitos rápidos observados, tendo em vista que a maior parte dos antidepressivos demoram cerca de 2 semanas para começar a apresentar os efeitos terapêuticos. Desse modo, devemos contemplar a possibilidade de mecanismos mais sutis, semelhantes aos que ocorrem durante um processo de psicoterapia, e ligados aos efeitos agudos da experiência psicodélica. De fato, no nosso estudo, os pacientes que tiveram maior diminuição nos sintomas 7 dias após o tratamento, também relataram mais alterações na visão, tato e audição durante a sessão de tratamento.
Soubemos que levou bastante tempo para que esse trabalho fosse aceito e publicado em uma revista científica. Quais os motivos que vocês acreditam ter contribuído para essa demora?
O artigo demorou cerca de um ano e meio para ser publicado, tendo passado e sido negado por decisão editorial em 12 revistas científicas. Acreditamos que essa seja uma questão de muitos fatores, incluindo o fato da Ayahuasca ser uma substância que está longe do radar da psiquiatria.
Quais são os próximos passos necessários para que esse estudo possa avançar?
O próximo passo natural seria ampliar o número de pacientes tratados e testar diferentes esquemas de tratamento, por exemplo, doses repetidas em um certo intervalo de tempo para avaliar a consistência dos resultados encontrados por nós em condições de tratamento mais apropriadas.
Como foi realizado o estudo?
Fizemos o que se conhece por ensaio clínico randomizado duplo cego. Isso significa pegar um grupo de pacientes, e, de maneira aleatória, separar aqueles que vão fazer parte do tratamento que se quer testar, no nosso caso a Ayahuasca, ou do grupo placebo. Além disso, nem pacientes nem pesquisadores sabiam qual a substância, ayahuasca ou placebo, estava sendo administrada, daí o termo duplo (para pacientes e pesquisadores) cego.
Participaram do estudo 29 pacientes com depressão. Esses pacientes haviam feito uso de pelo menos dois antidepressivos de classes diferentes, sem sucesso. Além disso, eles nunca tinham bebido Ayahuasca.
Desses, 14 tomaram a Ayahuasca que nos foi fornecida pela igreja Barquina de JiParaná-RO. Os outros 15 tomaram o placebo, que foi desenvolvido para ser o mais parecido possível a Ayahuasca – marrom, sabor amargo e azedo, contendo sulfato de zinco que provoca leve desconforto gastrointestinal.
Todo o experimento aconteceu no Hospital Universitário Onofre Lopes – UFRN. Os pacientes foram acomodados das 8h às 16h em um quarto com cama, poltrona reclinável, iluminação natural e música suave.
Após receberem explicações detalhadas dos efeitos que poderiam sentir, receberam a substância por volta das 10h com a recomendação de ficar de olhos fechados, relaxar e prestar atenção nas sensações que poderiam ter. A qualquer momento, poderiam chamar os dois pesquisadores que ficavam em uma sala ao lado.
Os pacientes foram avaliados por psiquiatras um dia antes e um, dois e sete dias após a sessão.
Em entrevista à Folha de São Paulo, vocês disseram que há uma “nova onda psicodélica a caminho”. O que isso significa?
Desde a proibição dos psicodélicos no final da década de 1960, a pesquisa científica com essas substâncias praticamente parou. Antes de serem restritas, as substâncias psicodélicas estavam em fase de testes para muitas condições psiquiátricas, incluindo transtorno obsessivo-compulsivo e dependência a álcool. Em meados da década de 1960, mais de 40.000 indivíduos haviam participado de pesquisa clínica com psicodélicos. Além disso, mais de 1000 artigos científicos tinham sido publicados sobre o assunto.
Há uma nova onda de pesquisas com psicodélicos avançando a largos passos no mundo todo. Por exemplo, há estudos atuais sugerindo o benefício terapêutico da psilocibina, outro psicodélico que ocorre naturalmente em um tipo específico de cogumelo. Esses estudos têm sugerido melhora significativa, por exemplo, em quadros de ansiedade e depressão em pacientes em fase terminal, e no tratamento da dependência de álcool e tabaco. Essa matéria da Piauí pode ajudar a entender um pouco melhor o cenário em 2015: http://piaui.folha.uol.com.br/materia/doce-remedio/
O nosso estudo se insere nessa onda, e esse é o primeiro estudo randomizado controlado por placebo a investigar o potencial antidepressivo de um psicodélico em uma população de pacientes com depressão resistente ao tratamento. No geral, este estudo traz novas evidências que apóiam a segurança e o valor terapêutico dos psicodélicos, quando usados em ambiente e com intenção adequados.
O Eureka Brasil agradece a disponibilidade dos cientistas. Se você leu e curtiu, compartilhe! J